domingo, 31 de outubro de 2010

coisas más



Fio de luz se expandindo pela madeira do chão encerado. Talvez início de manhã fria de inverno, mas não no calor abafado daquele quarto barato de cheiro adridoce. Sapatos jogados... os dele, marrom sangue coagulado, perto da cômoda; os dela, vermelho sangue fresco, ao lado da poltrona de tecido, exoticamente verde musgo. Roupas, desconhece-se, talvez do outro lado da cama. Edredon de flores amassado no chão. Um pé delicado anunciando-se de bruços pela borda direita da cama, escapando ao lençol. Dobras, muitas dobras brancas, costas nuas, mechas escuras de cachos castanhos espalhando-se pelo travesseiro. Dormia pesado e sonhava leve. Solidão de pecados. Luxúria da noite esvaindo-se. Dele, só o cheiro na pele dela e os sapatos no chão. Não se ouvia som. Tudo ela, toda dele. Nós dois. Observo. Fio de luz se expandindo...

"I wanna do bad things with you."

Cristina Menezes

faltava


Olhou a nudez no espelho.
Sentia, não via, seduzia-se
Como dançasse por dentro.
Encontrou curvas, mas faltava.

Então dançou serpente.
Sorria, não ria, conquistava-se
Como corresse por dentro.
Encontrou ritmo, mas faltava.

Então correu sem destino.
Queria, não temia, conhecia-se
Como namorasse por dentro.
Encontrou tempo, mas faltava.

Então namorou sozinha.
Tremia, não gemia, abandonava-se
Como realizasse por dentro.
Encontrou prazer, mas faltava.

Então realizou o sonho.
Tivera, não desejara, possuia-se
Como existisse por dentro.
Encontrou vazio, mas já não faltava.

Então existiu de verdade.

Cristina Menezes

sábado, 30 de outubro de 2010

fingimento



Tempo não é hora corrida nos relógios do mundo. Sentimento de tempo é que faz tempo. E para mim faz... tempo. Tanto tempo. Afinal, esta é mesmo uma década de ano a sós. Espécime raro da procura interior, descoberta passada, fuga presente, refúgio futuro. Pensamentos transbordam na inocente falta de compreensão. Sentimentos mergulham na secretude do autoconhecimento. Alegria que dói, tristeza que sorri.

"O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente." (Fernando Pessoa)

Cristina Menezes